(Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo, Clarice
Lispector, editora Rocco, pg. 156).
"É preciso força, pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê"
terça-feira, 14 de maio de 2013
Se eu fosse eu...
"Quando
não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me:
se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria?
Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu
fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar.
Diria melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como
seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em
que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se
acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser
elas mesmas, e mudavam inteiramente devida. Acho que se eu fosse realmente eu,
os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria
mudado. Como? Não sei.Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso
contar. Acho, por exemplo,que por um certo motivo eu terminaria presa na
cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao
futuro."Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de
viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de
que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim
a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do
mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos
por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso
adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti
sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande
demais"
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